tERRA E LUGARES
ALAIN GUNST
(introduction monographie: “Jean Pierre Porcher, Margarida Oliveira e Albino Freitas”)
“O corpo é de terra e de lugares”, disse o filósofo Jean Marc GHITTI numa conferência na Sorbonne. Da terra planeta, o ser humano saiu, enquanto corpo. Da terra o homem extrai a pedra, da pedra fabrica o cimento, o gesso, a cal. Quanto à areia, vinda da pedra, ela é o resultado geológico de uma erosão marinha ou fluvial. Em todos os casos, a importância do solo é fundamental.
Os lugares do homem, os lugares habitáveis, só podem existir como lugares de vida e de inspiração se eles mesmos foram o resultado destes fenómenos simples, poderíamos dizer sustentados por estes fenómenos que podemos aprofundar, sem por isso perder a simplicidade fundadora. Em geral, as arquitecturas perdem-se em complicações insensatas que fazem perder de vista a terra e o corpo.
A grande qualidade da arquitectura de Topos, é uma qualidade humana, vinda da terra e dos fenómenos principais. Desde logo, um pano de parede, um pavimento, um embasamento, uma luz, desenham-se de maneira simples, depurada, sem ostentação, sem querer brilhar, sem outro saber fazer senão aquele legado pelos arquitectos e pelos edificadores terrenos de todos os tempos, o requinte consiste em considerar a medida dos lugares como fenómenos.
Medir a dimensão dos lugares e das matérias, é também tirar a medida do tempo de vida que aí se desenrola. A letra e o advérbio Y sugerem o encontro entre o lugar e a duração. Num lugar bem temperado, não precisamos de estilo, de forma, de gesticulação, de complicação ou de cenário. Apenas a matéria dimensionada e iluminada nos toca e nos inspira. Os lugares concebidos por Topos esperam simplesmente a vida simples que aí se desfruta, ainda melhor alguns desenhos ou pinturas são propostos ao nosso olhar, alguns objectos escolhidos e alternados se oferecem ao tacto, à preensão.
Os ensinamentos de Gropius, de Aalto, de Breuer, não foram ocultados por indigestas ”choucroutes” pós-cubistas, ou ainda pior, do século XX. Solo, pedra, cimento e areia, luz e medida são as componentes de um génio dos lugares a reencontrar no espírito humano assim como no real. Se o século XXI é o século da “reparação”, on atelier Topos dá a sua contribuição na fundação do lugar reencontrado.
Percorramos de mais perto alguns desses lugares saídos da terra, onde o tempo se reencontra. Em primeiro lugar, a casa em Dadim, perto de Braga, onde passei alguns dias felizes a meditar e a escrever acerca de um pano de parede rebocado com uma sábia mistura de cal, de areia e de barro local. Esta casa a meia encosta possui a faculdade de se iluminar consoante a hora do dia, de maneira suave, através de astuciosas opções de implantação, de materiais claros e do tratamento das aberturas. Filtradas sobre o céu, vastas sobre o poente, o ambiente é harmonioso como numa pintura do holandês Saenredam (sec.XVII). Lugares protegidos, íntimos, sucedem-se a outros lugares de estar mais abertos sobre a paisagem longínqua.
Sempre o pavimento de pedra, que se prolonga no exterior. Pedra fresca no verão, pedra quente no inverno. Transição das matérias, do granito local ao mármore, em seguida à argamassa de cal, na mesma cor de mel claro, táctil, antes de penetrar num compartimento mais secreto, como que aspirado pela natureza ao longo de um extenso pano de parede valorizando a diferença de nível do terreno escarpado. Qualidade táctil do pano de parede que permite um retorno sensorial desenvolvendo-se ao longo de uma parede geológica.
Astuciosa tecnologia, para lançar para o ar uma leve pala de betão, que protege o envidraçado da exposição solar directa. Penso que estes planos de pavimento, de paredes e de lajes permitem ao corpo orientar-se de forma sensível e qualitativa. A orientação do corpo é um dos fenómenos elementares que nos ligam à terra e nos colocam no mundo.
O sentido do tacto manifesta-se sobremaneira, na constituição dos lugares a que o atelier Topos chama “bons coins” do Clubhouse do golfe de Ponte de Lima. Poderíamos dizer também o sentido do que é tocado, o que aí tocamos é a pedra de xisto, perfeitamente compreendida, recolocada em obra, integrada na vivência de sensações novas. Este grande pano de xisto que o corpo pode tocar tanto no exterior como no interior, a variedade ostentada no material pedra, o grão e a cor discretos, fazem deste pano a origem de um lugar sensível constituído pela junção com o plano do solo. Carícia e permuta entre duas matérias irmãs. Catálise sensorial por um instante apreciada por um júri sensível ao real. Ultrapassando o passaporte e a burocracia, o prémio de excelência em matéria tópica parece-me evidente, quando dois panos de matéria se oferecem em manifesto à pluralidade dos sentidos.
Para dizer algumas palavras sobre o loteamento “Dona Antónia Amorim”, evocarei ao mesmo tempo o corpo como somática da exploração e a paisagem como meio de diversificação do espaço terrestre, segundo a expressão do geógrafo Gabriel Rougerie. Encontramos neste loteamento, o que é raro, uma corrente geoconstrutora que constrói a paisagem como consciência e sentir da terra. Os panos de pedra colorida esculpem a terra que nos sustenta. Eles próprios incitam-nos a uma exploração do mundo, a partir de lugares que se sucedem em declive suave, através das altas matas de pinheiros e eucaliptos. Esta mata perfumada precisa, para existir como lugar, destes longos muros oblíquos. O corpo humano pode então explorar as configurações imbricadas destes muros e destes pavimentos que orientam e suportam o movimento dos passos.
Quando o deslizamento regular dos passos encontra matéria para explorar a paisagem consciente, medir com passos é o meio para o corpo estabelecer a síntese entre o gesto, a sensação, a orientação e a exploração. O que funda a somática do corpo num lugar de inspiração. A palavra pode então existir. Nada é mais difícil para o arquitecto do que a decisão de intervir num sítio arborizado em declive. Uma implantação não pensada arrisca-se a desnaturar o espírito do lugar através da perturbação. O atelier Topos consegue, através das suas implantações de matérias, de pavimentos e de muros, diversificar o lugar geral numa adição de lugares múltiplos de grande qualidade. O surgir de um tronco de pinheiro jorrando do solo na sombra de dois muros de granito aparelhado já tem com que nos inspirar. Outras surpresas nos esperam que vão fundar o real.
A fundação do lugar como real inventa-se e constrói-se no atelier Topos ao ritmo dos projectos e dos dias. Já era tempo, estávamos consternados com a proliferação de objectos, caixas de cartão ampliadas, caídas de pára-quedas. A cidade parecia invadida pelo seja o que for onde quer que seja. Topos parte da terra, fenómeno universal, implanta geralmente duas matérias, filhas da terra: pavimento, adaptado ao terreno, e panos de parede, saídos do terreno. Depois cobre, abriga, deixando a luz banhar o conjunto de persuasão. Fácil, menos fácil. Porque a receita só faz bons cozinhados se a arte dos edificadores intervém, isto é a medida, a dosagem.
E depois há o pormenor, incontornável. A maneira como as matérias se colocam em obra para nos tocar, a maneira como uma porta vai subtilmente abrir a um terço da sua dimensão. Como uma caixilharia vai aparecer simples, discreta, e deixar passar o ar e a luz. A maneira como um pavimento encontra uma parede. Como um lugar se sucede a um outro lugar, como uma lareira se torna discreta no verão para aquecer no inverno.
Se passei algumas horas a sonhar com o lugar reencontrado, devo-o a estas pessoas subtis e discretas, cuja energia útil se constrói no contacto com as terras a viver. Que o ritmo destas linhas possa prestar uma modesta homenagem a Margarida, Jean Pierre e Albino, os barqueiros de Topos para as civilizações vindouras.